uma experiência de aprendizagem a partir das reflexões e dos gestos que realizam a conservação e o restauro
Antes de uma intervenção de conservação e restauro no Patrimônio Cultural Edificado, diferentemente de uma reforma, acontece um trabalho feito por diversos profissionais, com a leitura da edificação, de seu estágio de conservação e compreensão de sua história. Temos em mãos um projeto de restauro, o qual precisa ser atualizado, muitas vezes, seja pela passagem do tempo, seja pela ocorrência de um novo contexto climático, por exemplo. Neste trabalho inaugural são mapeados os detalhes construtivos do bem cultural, de seus componentes e elementos artísticos É neste momento, caso o projeto não detalhe, que nos debruçamos nos estudos de granulometria das argamassas, as tipologias e operações de esquadrias, entendimento da cobertura, compreensão dos saberes e fazeres envolvidos. Tudo isso e mais uma série de inspeções e atualizações, antes mesmo da montagem de um canteiro de obras.
Com o intuito de experienciar um canteiro de obras em andamento, a equipe de Zeladoria do Patrimônio Cultural do Estúdio Sarasá, em setembro de 2025, esteve na Antiga Escola Normal Caetano de Campos (atual Sede da Secretaria do Estado da Educação), obra de conservação e restauro, podendo vivenciar o ato interventivo pelas mãos de quem o executa. Essa escrita objetiva descrever essa vivência inter e transdisciplinar.
O Edifício chamado de Caetano de Campos foi construído em 1894 pelo Escritório Técnico Ramos de Azevedo. Sede da primeira Escola Normal paulista, foi concebida como um dos símbolos da educação do Estado, fazendo referência a “Caetano de Campos”, médico e educador responsável por executar a reforma promovida na estrutura de ensino, com a criação das escolas-modelo e a introdução de novas disciplinas no currículo, com o objetivo de modernizar as práticas pedagógicas. Foi também diretor da Escola até o momento de sua morte, em 1891. Outra de suas preocupações foi a criação de um prédio sede para a escola normal, visto que antes ela encontrava-se dividida em diferentes endereços. O tombamento do edifício ocorreu a partir de reivindicação da população, especialmente ex-alunos, contrária à sua demolição na década de 1970, a qual foi anunciada pelo metrô para a construção da Estação República. Com a transferência do local do Instituto de Educação em 1978, abriga desde então a sede da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Sendo reconhecido como monumento histórico e tombado como bem cultural do Estado e do Município de São Paulo pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP).
“Ela é mais que os edifícios nos quais se desenvolveu e mais que os nomes daqueles que lhe guiaram o leme. (...) A Escola ‘Caetano de Campos’ de hoje, a Escola Normal da Capital de ontem ou o Instituto de Educação de hoje tem prestado serviços relevantes à coletividade e muitos mais ainda vai prestar”
(Rudolfer, 1946, p. 20).




Os trabalhos de conservação e restauro da Antiga Escola Normal Caetano de Campos são executados pelo Consórcio Caetano de Campos, em que o Estúdio Sarasá faz parte e iniciaram em outubro de 2024. Dentre os serviços, destacam-se a recuperação das fachadas, esquadrias, cobertura e ornamentos. O projeto busca restituir a integridade estética e estrutural do edifício por meio de técnicas especializadas de conservação, recomposição de seus elementos e tratamento de áreas degradadas, assegurando o respeito aos materiais históricos e a proteção do conjunto arquitetônico. Trata-se de uma intervenção abrangente que une rigor técnico e respeito ao patrimônio cultural, devolvendo à edificação sua leitura arquitetônica plena e garantindo sua preservação.

A oficina ministrada no canteiro de obras teve como mote a temática das argamassas tradicionais e o uso da cal, um material bastante abundante em se tratando de edificações históricas. Com isso, o conhecimento técnico e os saberes tradicionais foram transformados em uma prática acessível e sensível. Da calcinação da pedra à aplicação da cal, da hidratação à lenta cura que a reconduz à solidez, foram demonstrados processos que extrapolam a teoria, que podem (e devem) ser vividos e sentidos para que sejam genuinamente compreendidos.
Para compreendermos a parte técnica sobre o ciclo da cal, foi destacado que a pedra calcária, composta essencialmente por carbonato de cálcio, é submetida à calcinação e transforma-se em cal virgem (óxido de cálcio). Ao juntar-se à água, ocorre a hidratação, onde a cal passa pela “queima”, liberando calor, transformando-se em cal hidratada, revelando uma textura fina e maleável, que deve ser cuidada diariamente no canteiro.
A partir disto, com o amassamento e a incorporação de areias e outros elementos, nasce a argamassa fresca. Esta, após aplicada, “repousa”, passando por um período de cura, onde parte da água evapora enquanto o hidróxido vai recuperando dióxido de carbono do ar, em um processo de carbonatação, recriando progressivamente carbonato de cálcio e endurecendo a massa até a argamassa final.
Esse ciclo, que envolve desde a pedra à cal virgem, à cal hidratada, à argamassa e de volta ao carbonato, não é somente químico, ou seja, é o que permite que os patrimônios culturais respirem e, consequentemente, perdurem por séculos chegando até nós. A composição de cal deixa o conjunto poroso, facilitando as trocas gasosas, o que evita que a umidade fique aprisionada nos alicerces e revestimentos, protegendo os bens culturais. Desta forma, deve-se evitar, nas construções históricas, soluções impermeáveis que, em vez de ajudar, aceleram a degradação.

Na conservação e restauro do patrimônio cultural é preciso cultuar os fazeres construtivos de outrora, estudando-os e lançando mão de técnicas compatíveis física, química, estética e culturalmente para a preservação, levando em consideração as propriedades dos materiais, sua durabilidade e qualidade. A conservação parcial ou pontual deve ser adotada em detrimento da remoção e substituição total. Preserva-se ao máximo o material preexistente, atentando-se ao seu estágio de sanidade e características.
Sendo assim, as argamassas de cal são adequadas, pois as alvenarias e revestimentos tinham originalmente este material como base. Como características, destacam-se: a plasticidade, a porosidade, a permeabilidade, a resistência mecânica, a inércia térmica, um menor custo. Conforme Kanan (2008, p. 24), “as argamassas e rebocos à base de cal atuam como material de sacrifício, e, por isso, protegem a estrutura”, o que respeitamos em nossas atuações.
A oficina realizada no canteiro de obras do edifício Caetano de Campos foi realizada por Marcos Máximo, mestre de restauro do Estúdio Sarasá, sendo o responsável pela passagem desses saberes à equipe de Zeladoria do Patrimônio Cultural do Estúdio, área com ênfase em iniciativas que valorizam o componente humano do patrimônio, pela retomada do conhecimento, de saberes, fazeres e dizeres, pela atualização e possibilidades dos discursos concernentes, através da abertura de projetos, agendas, oficinas e canteiros vivos. Consubstanciada em metodologia própria e princípios, é uma maneira de olhar e realizar a preservação dos bens e culturas, sobretudo pela valorização da afetividade dentro do processo, sendo a experiência da oficina uma importante etapa no aprendizado.
Dessa forma, a abertura do canteiro à Zeladoria possibilitou o diálogo acerca da recomposição de argamassas históricas bem como o refazimento de panos lisos, ornatos e frisos, transformando conceitos em experiência sensorial. O aprendizado vivido no canteiro, pela observação e prática junto a quem domina o ofício, permitiu uma compreensão apurada dos processos e suas nuances.






Figura 13 a 18: Visita ao canteiro de obras: aprendendo sobre os processos de preparação da argamassa e o funcionamento dos moldes utilizados na reconstituição de ornatos. Acervo Estúdio Sarasá
Esse tipo de saber, no entendimento das equipes do Estúdio Sarasá, é o que precisa ser transmitido. Não se trata apenas de difundir receitas e proporções, mas o entendimento e o respeito, a paciência e o tempo, o afeto pelo material e o desejo de que as próximas gerações saibam da técnica. Nessa passada do conhecimento, a sensibilidade é um ponto de grande relevância, pois a possibilidade de sentir as texturas e o trabalho da cal como um gesto de cuidado, é uma etapa que suscita a continuidade e o amor pelo patrimônio cultural.

O mestre Marcos ensinou princípios no trabalho com o patrimônio cultural. Com a sigla CHA, ele norteou o espírito constituidor da atuação em equipe e no coletivo, ou seja:
“C” de Conhecimento: não apenas acúmulo de informações, mas cuidado com a memória técnica. Conhecimento compartilhado cria segurança; é a base que permite decisões conscientes e respeito pela história que se conserva.
“H” de Habilidade: o saber que vira gesto. É o treinamento do corpo e da mente, a precisão do movimento, a sensibilidade do toque. Habilidade é escutar a matéria com as mãos. É também ensinar e aprender: a perícia aumenta quando se divide.
“A” de Agilidade: não a pressa, mas a capacidade de responder com clareza. Agilidade é manter flexibilidade sem perder o propósito; é reorganizar-se para proteger o bem comum.
Assim, no trabalho em equipe, busca-se a integralidade: a confiança nos processos e ajustes que levam à excelência, a comunicação esclarecedora e permeada de intenções, a humildade para acolher pontos de vista e a responsabilidade para com os resultados. Estes pilares (Conhecimento, Habilidade, Agilidade) não competem, mas convergem, estabelecendo uma rede para a preservação, tornando-se um lema de que trabalhar com excelência é também cuidar uns dos outros e daquilo que nos foi confiado.
Conforme apresentado por Marcos Máximo, as edificações falam quando aprendemos a escutá-las, com os olhos, as mãos e o coração. Cada parede, fissura e acabamento guarda sinais de sua história, mas é preciso instrução e guia para decifrá-los. Por isso, os mestres detentores dos conhecimentos de cada ofício são figuras imprescindíveis para este processo, pois neles se condensa a transmissão de saberes e fazeres que atravessam o tempo, guardando em seus gestos uma memória coletiva, para além do que se encontra nos livros, capaz de unir experiência e intuição.
Compreendemos, assim, a premência na perpetuação desse conhecimento, por meio de canteiros abertos e vivos, espaços em que teoria e prática se entrelaçam, permitindo o aprendizado direto com a matéria e com as afetividades intrínsecas ao bem cultural. Em obras singulares, como na Antiga Escola Normal Caetano de Campos, esse gesto ganha ainda mais sentido, por não se tratar apenas de conservar fachadas e esquadrias, mas de manter pulsando um legado, permitindo que o passado dialogue com o presente e se projete para o futuro com integridade e sensibilidade.
Texto escrito por: Carolina Barboza Pinotti, Maria Clara Verissimo
Referências: ARQUIVO ARQ. Escola Normal Caetano de Campos. Disponível em: https://arquivo.arq.br/projetos/escola-normal-caetano-de-campos
DE SOUZA, Eduardo. Objetos da modernidade: a Escola Caetano de Campos e seu jardim de infância–São Paulo (1890-1920). Revista Linhas, v. 24, n. 54, p. 431-462.
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CAETANO DE CAMPOS. CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. Disponível em: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/instituto-de-educacao-caetano-de-campos-2/
KANAN, Maria Isabel. Manual de conservação e intervenção em argamassas e revestimentos à base de cal. Brasília, DF: IPHAN / Programa Monumenta, 2008. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/CadTec8_ConservacaoeIntervencao_m.pdf
RUDOLFER, Noemi. Poliantéia do Centenário do Ensino Normal em São Paulo. São Paulo: Instituto de Educação Caetano de Campos, 1946.
SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Escola de Formação – Portal da Escola Caetano de Campos. Disponível em: http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Default.aspx?tabid=7541